Eu sei que preciso escrever sobre isso. Sei que a única maneira de transformar tudo o que estou sentindo em algo bom, será conseguir tirar algum sentido, alguma lição, alguma coisa boa de tudo isso.
Sei também que são muitos os que precisam escutar algo, um cafuné que seja, uma luz no fim do túnel tão longo e solitário no qual se encontram.
Mas como tirar sentido do fato de pais não aceitarem seus filhos? 

Tem coisas que podem ser ditas, claro: “calma, dê tempo a eles”; “eles são de outra geração”; “a religião não aceita, como eles podem aceitar?”; “lembra como foi difícil para você se aceitar? Então, eles também precisam de tempo”; “eles te amam, podem até não aceitar, mas só querem o melhor para você”; “era melhor que eles nunca tivessem sabido”.
Cada um dia nós, que já passou pelo martírio de sair do armário para pais que não aceitam sua homossexualidade, conhece essas frases. E outras tantas. E muitos dos que ainda estão no armário, que tristeza, um dia também escurão isso.
Você começa com aquele medo de descobrirem o seu grande segredo. De saberem de você. Do que você carrega no coração. Dez entre dez tem medo de machucarem seus pais, de fazê-los sofrer. Outro grande medo nos assombra: e se não nos amarem mais depois disso? E se nunca nos aceitarem?
Muitas lágrimas escondidas. Muita vontade de morrer. Muita dor nas frases do dia a dia: “olha ali o viadinho”; “aquela não engana ninguém”; “e os(as) namoradinhos(as)?”.
E o teu eu te gritando, te implorando ser escutado.
Daí você tenta administrar sua vida em segredo. Divide-se em ‘dois’. Quem você é socialmente e para a família, e quem você é quando pode expressar o que você sente por dentro de fato.
O computador ajuda. O celular.
Você se permite algumas migalhas de ser você mesma(o).
É tão bom! Teus olhos brilham, teu coração bate acelerado e você que sempre está no modo “automático”, dormente por essa vida cheia de imposições, de repente se sente viva(o)!
De repente você se pega sorrindo o mais verdadeiro sorriso e você entende: não há como fugir de quem se é. Nos transbordamos sempre.



Um dia, por acaso ou por vontade (voz presa um dia estoura), seus pais sabem sobre você. E aí o inferno começa.
Os choros contínuos. As gritarias. As acusações. As dores.
De repente, todo aquele amor que se sentia, parece transformar-se em munição: como você ousa trair as expectativas dos seus pais?
Como ousa ser...ser homossexual? “Mulher-macho”; “homem-fêmea”? Gostar de outra mulher? Gostar de outro homem? Viado! Sapatão! Desgraça da família! Você não é mais minha filha! Você não é mais meu filho!
Gritos. Muitos gritos.
E muitos silêncios ensurdecedores também.
Te olham diferente agora.
Te tratam diferente agora.
Vigiam teus passos. Teus olhares.
Temem constantemente que outras pessoas saibam dessa tua característica tão abominável.
Abominável.
Usam teu Deus para te julgar.
Teu Deus que te ama tanto, vira arma cruel que fere e machuca mais que tudo.
E teu colo, teus pais, teu lar, viram a coisa mais horrenda que você já conheceu. O inferno se faz em vida para ti. E teu choro parece não ter fim. Todos estão contra ti e você não sabe a quem recorrer.
Parece que tudo o que você sempre foi não importa mais.
Você agora é um estranho. E eles não sabem lidar com você.
Querem te tratar, te internar, te exorcizar.
Rezam incansavelmente por tua cura.
E você grita “Não estou doente! Não preciso de cura!”
Mas o preconceito não tem interesse em escutar: o preconceito acha que já tem todas as respostas, todas as verdades.
E muitos permanecem presos nessa realidade tão cruel até que se cansam e se calam e prometem que se curaram. Mesmo que por dentro saibam que não, que nunca, que são quem são e não lhes cabe escolher. Nunca foi uma questão de escolha...
Os sortudos acham uma saída. Se distanciam.
Mas, ainda tentam, esperançosos, que o tempo ajude.
E para uns ajuda.
Alguns pais se transformam.
Seja pela distância, seja pela saudade, ou pelo medo de perder seus filhos, alguns pais tornam-se a versão mais linda de si mesmos: e viram pais e mães de verdade. Sendo colo, sendo amigos, sendo pais.
Outros não.
Não importa o tempo que passe, não importam as tentativas de diálogo, apesar até mesmo das promessas feitas, eles simplesmente não conseguem.
É fácil não conseguir.
Existem tantos Felicianos, Bolsonaros, Malafaias, tantos padres, pastores, rabinos, tios, tias, televisão... tanta coisa que diz que NÃO É OK, que não é normal, que isso é uma abominação.
Uma abominação.
Quão cruel é que teus pais te chamem de abominação?
Que creiam realmente nisso?
E você, você que queria apenas amar e ser amada(o).
Você que queria apenas parar de mentir para seus pais.
Você que queria apenas partilhar seus sorrisos e suas lágrimas com seus pais.
Você que pegou seu coração em carne viva e deu a eles achando que eles saberiam cuidar desse pobre coração tão sofrido.
Mas tudo o que eles souberam fazer foi te transformar na dor deles.
A tua dor em momento algum importou.
A dor deles, a desilusão deles, a traição que eles sentiram sempre foi tudo o que eles expressaram.
E você, você que ousou destruir a família, envergonhar seus pais, você se vê também traído.
Se nunca prepararam teus pais para a possibilidade de um(a) filho(a) homossexual, também nunca te prepararam para o fato de que o amor dos pais NÃO É incondicional.
Existem sim condições. Muitas condições.
E você aprende isso a partir de MUITA dor. De muito abandono. De muito julgamento.
Para os casos mais extremos, de pais que nunca aprendem a aceitar seus filhos homossexuais, nós aprendemos que podemos existir sem eles.
É um aprendizado horrível. Nunca nenhum filho deveria descobrir que pode viver sem seus pais, que pode passar meses, talvez anos, sem saber deles.
Nunca nenhum filho deveria se casar sem que seus pais escolham não estar presente em seu casamento.
Nunca nenhum filho deveria sonhar com coisas simples que não pode ter: visitar seus pais com seu amor, fazer um jantar em família, ligar para dividir uma receita que fizeram, dizer que estão pensando em ter filhos.
E o amor, você então entende, para existir precisa ser alimentado. Precisa também receber amor para continuar.
Quando tudo o que se recebe é dor e não aceitação, há uma hora em que um “basta!” começa a nascer dentro de você.
Há uma hora, por questão de sobrevivência, que você já não quer ouvir a voz ou ver o rosto. Há uma hora em que a dor que eles sentem por você ser homossexual já não lhe comove. Há uma hora em que você olha para eles e os acha tão egoístas, tão limitados, tão cruéis, que tudo o que você quer é estar longe.
E não é que você os odeie. Não. Você ainda os ama.
Você apenas não os aceita.
As palavras que eles sempre disseram ou deixaram de dizer; as tantas vezes que eles te condenaram e te fizeram o motivo de toda a desgraça deles; os tantos gritos já dados; os tantos silêncios; as tantas tentativas de te fazerem “normal”; as tantas vezes que você acreditou que eles tinham aceito apenas para que todo o preconceito voltasse em força total; as tantas e tantas vezes que as palavras cruéis deles, as vergonhas deles, as dores deles rodopiaram sem fim em ti...
Tudo isso um dia nos alcança e nos cansa.
Um dia, todo o amor se transforma em cansaço.
E tudo o que você quer é paz.
Tudo o que você quer é viver sua vida sem ser constantemente julgado e condenado.
Sem ser constantemente a causa da infelicidade e decepção dos seus pais.
Um dia você se liberta, cheio de cicatrizes e dores, daqueles que você sempre amou mais que tudo.
E é uma libertação triste, mas necessária.
Teus filhos um dia precisarão de ti. Precisarão que VOCÊ seja o exemplo deles: o exemplo de amor, de virtude, de colo.
E como ser o belo para seus filhos se aos olhos dos teus pais você é tão errada(o)?
Como segurar a mão do teu amor ouvindo constantemente o quão reprovável é esse amor?
Como construir tua família perto daqueles que não veem a tua família como uma família?
Como seguir com a vida perto dos teus pais se o que eles querem mais que tudo é que você NÃO MOSTRE PARA NINGUÉM quem você é?
Eu verdadeiramente acho que esses pais (nossos pais) nunca planejaram se tornarem pessoas tão feias e mesquinhas.
Eu realmente acho que um dia eles olharam para nós na maternidade e prometeram nos amar da forma mais linda e fiel. Tenho certeza que juraram fazer de tudo o que estivesse ao alcance deles para nos fazer feliz (e é provável que eles tenham feito isso por muitos e muitos anos).
Mas aqueles jovens se perderam em suas próprias expectativas. Nas regras religiosas que aprenderam, no medo do que os outros vão pensar, no desejo de que você fosse alguém que pudesse compensar todos os sacrifícios que eles fizeram por você (e é muito provável que você seja!).

E nós, nós aprendemos que às vezes, estar longe dói menos do que estar perto. 




Deixe um comentário